aos olhos de Wermmer
tudo é possível crer
até em quem não cria
Federika Lispector
imagem: Jose Cesar Castro
ainda não
sei
se baudelérico ou baudelírico
só sei que ando meio mallarmélico
completamente absurdado
com esse leite condensado
na minha língua do delírio
EuGênio Mallarmè
VIA
ESPESSA
“O louco estendeu-se sobre a ponte
E atravessou o instante.
Estendi-me ao lado da loucura
Porque quis ouvir o vermelho do bronze
E passar a língua sobre a tintura espessa
De um açoite.
Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz
À minha dura noite.”
HILDA HILST
Minha filha Beta fez uma postagem sobre como seu filho, Liam,
tem o hábito de assobiar, e isso a fez lembrar de seu avô, meu papito. É o
assobio hereditário. Ótimo pretexto pra repetecar aqui a foto que ela usou e um
poema que escrevi pro Velho, no século passado.
para Olympio
Fernandes Guedes
meu pai caminha para os oitenta
batendo perna e assobiando
lá na morada do parque, em montes claros, mg
granizo de tempo e vento
aninhado nos cabelos
mas a música de pássaro
revoeja no assobio
ladeira acima e ainda
devagar e sempre
o passo de quem puxa
de uma perna desde menino
|um pé no estoicismo:
paciência repisada
por um espírito lúdico|
caçula de um sanfoneiro sapateiro menino
alfaiate mocinho lições de composição com mano
godô e logo tocando banjo no pequeno jazz band
de godofredo guedes, de riacho de santana, bahia
um futuro de improviso
e a música dos trilhos
no trem para são paulo
trem fechado com migrantes
ultrapassando toda estação
sequestrando o sonho
de cidade grande
— moço, que lugar é esse?
— aqui é jundiaí.
— cadê são paulo?
— já ficou lá longe.
— mas esse trem não para?
— só vai parar em americana,
levar esse povo pra lavoura.
— obrigado, mas a enxada
eu já deixei lá no riacho,
na beira do são francisco.
ajude aqui com esta janela,
que meu destino é são miguel,
vou trabalhar na fiação de seda,
entrar pro círculo operário
|e para um círculo esotérico|
e à noite tocar clarinete
num regional que só tem negro
e quando eu tocar nos cabarés e clubes
eles vão rir e sacudir a cabeça —
“esse branquelo é danado de bom”
e um dia terei a suprema honra de
acompanhar a divina elizeth cardoso
depois a vida idas e vindas
o clarinete no estojo preto
com monograma OFG
|um menino desenhando o pai
descendo a rua com o estojo na mão|
o assobio matinal, a música no rádio
o assobio anunciando a chegada
|o gato pontual esperando no portão|
a mãe sonhava os desastres
o pai com sangue na camisa
o brilho fugidio das lembranças
gotas de mercúrio no esgoto
da fábrica jorrando no rio
meu pai caminhando no tempo
o retorno ao riacho o pouso em
montes claros e a musa música
tocatas dos manos chorões
florituras do clarinete italiano
o papagaio solfejando no poleiro
e a música que me acompanha
o assobio atravessando o tempo
Luiz Roberto Guedes - 1998
O AMOR
O que tu tens, que temos,
que nos passa?
Aí, nosso amor é uma corda dura
que nos amarra e fere
e se queremos
deixar nossa ferida,
separar-nos,
nos faz um novo nó e nos condena
a nos sangrar e a juntos nos queimar.
O que tens? Te contemplo
e nada encontro em ti senão teus olhos
como todos os olhos, uma boca
perdida entre mil bocas que beijei, mais formosas,
um corpo igual aos que já resvalaram
pelo meu corpo sem deixar memória.
Vazia caminhavas pelo mundo
como uma simples jarra cor de trigo
sem ar, sem nenhum som, sem substância!
Em vão busquei em ti
profundidade para meus braços
que escavam, sob a terra, sem cessar:
sob tua pele, sob teus olhos
nada,
e sob teu duplo peito levantado
apenas
uma corrente de ordem cristalina
que não sabe por que corre cantando.
Por que, por que, por que,
ai, meu amor, por quê?
Pablo Neruda:
In Os Versos do Capitão
Ricardo Carranza
Sketchbook 2024.
— em Perdizes, São Paulo,
Brasil.
A recente publicação de Ensaios do
arquivo (Rio de Janeiro: 7Letras, 2023, 156 p.), de Vera Lins, que
reúne textos dispersos apresentados em congressos ou publicados em periódicos e
coletâneas ao longo dos anos, se soma a dois trabalhos seus anteriores, Poesia
e crítica: uns e outros (Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, 168 p.) e O
poema em tempos de barbárie e outros ensaios (Rio de Janeiro: EdUERJ,
2013, 196 p.), em que se destacam as reflexões em torno da crítica de arte e da
poesia brasileira, mas não apenas, abordadas da perspectiva do ensaio.
Os três livros formam um conjunto
valioso e coeso, em que temas e problemas são retomados e aprofundados, entre
eles Paul Celan, Ingeborg Bachmann (que ela traduziu), a crítica de arte no Brasil,
principalmente a de Gonzaga Duque, de quem republicou alguns livros há muito
não reeditados, mas também a de Ruben Navarra, crítico de arte brasileiro dos
anos 1940, reflexões sobre cidade e memória, particularmente no século XIX e na
virada para o XX, a forma do ensaio, as relações entre poesia e artes
plásticas, Murilo Mendes, autores brasileiros anteriores ao modernismo e o
mesmo tempo já distantes das principais “escolas” literárias do século XIX,
escritores simbolistas do Brasil e alguns poetas brasileiros contemporâneos.
O pano de fundo, a forma ensaio, é o
que mobiliza as reflexões. Ensaio, aqui, entendido principalmente a partir de
Benjamim em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Nas
palavras de Vera Lins: “Para os românticos alemães a crítica desenvolve a
reflexão que a obra de arte contém, portanto não é julgamento, mas partilha com
a obra de arte um modo de pensar infinito”. Aspecto central do alto romantismo
alemão, a ideia de que a própria obra já contém elementos autorreflexivos, o
papel da crítica não é propriamente avaliativo, mas de voz paralela que amplia
a reflexão contida em germe na obra e ensaia suas múltiplas direções.
Outros autores são centrais no rol de
referências de Ensaios do arquivo. Buscando indicar os mais decisivos
para suas inquietações, importam Valéry em suas digressões sobre poesia e
pensamento abstrato, em que a poesia, como ato de pensamento não integralmente
consciente, se torna o território em que intelecto e sensibilidade se
articulam; o crítico português João Barrento e tradutor de Paul Celan,
particularmente em O gênero intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento,
em que configura a ideia de ensaio a partir das noções de deambulação
orientada, deriva com norte, labirinto com zênite à vista, centro descentrado
ao qual sempre retornamos; e Jacques Rancière, em A partilha do sensível,
que formula uma alternativa às categorias tão problemáticas de modernismo e
pós-modernismo propondo pensarmos a arte e a literatura a partir de três
regimes estéticos sucessivos: o ético da imagem sagrada; o representativo a que
chama poético; e o estético, em vigor desde o final do século XVIII, orientado
pela quebra dos gênero e pela atenção ao que é ínfimo, banal, comum.
As reflexões dos autores do primeiro
romantismo alemão sempre ocuparam o interesse de Vera Lins, o que de certa
forma é raro no cenário nacional. Neste novo livro, há todo um capítulo
dedicado a Novalis, principalmente por ocasião da publicação de Pólen, e
que é uma excelente introdução ao pensamento do autor e sua importância para
pensarmos não apenas o romantismo, mas o regime da arte dos dois últimos
séculos.
Na esteira de autores de língua alemã
ou da Alemanha, onde Vera viveu alguns anos, ela dedicou-se mais verticalmente
a obras de Walter Benjamin e aos poetas Paul Celan e Ingeborg Bachmann, sempre
tendo como pano de fundo o tema do exílio, do desterro, do deslocamento, mas
não apenas nesses autores.
Nessa perspectiva, chama atenção um
ensaio sobre Samuel Rawet, contista que me parece fundamental na prosa
brasileira dos anos 1960, ao lado de Clarice Lispector e João Guimarães Rosa,
em que o tema do exílio se articula com o da linguagem. Só nos últimos anos a
obra de Rawet foi republicada e passou a ter a atenção que merece, mesmo que
ainda insuficiente diante do que pode ser considerado a partir de seus livros,
tanto para a compreensão de uma época do país quanto para os caminhos da prosa
entre nós. Rawet veio ainda criança para o Brasil, aprendeu a língua portuguesa
e é essencial para pensarmos como a circunstância de não pertencimento a uma
cultura se cruza com a deriva da linguagem e o nomadismo da experiência
existencial e da escrita.
Não apenas Rawet atesta o interesse
neste novo livro pelas formas da prosa, seus gêneros diversos. Além dos
diversos textos e passagens em que é abordada a forma ensaio, há um curioso
capítulo sobre o diário em que se esboça a ideia de tratá-lo como um gênero
ensaístico. Em proximidade com esse capítulo, no qual, inclusive, a autora
introduz elementos de sua própria biografia, há outros em que se cruza a
memória pessoal e as reflexões em pauta, como suas recordações dos anos em que
viveu na Alemanha ou de uma exposição de arte brasileira que viu em Viena, em
2007/2008, que lhe permite aproximar diversos de seus interesses: as artes
plásticas do Brasil do final do século XIX e do modernismo simultaneamente a
obras poéticas e à crítica de arte modernistas. Mas é principalmente a
imbricação entre experiência vivida e temas do pensamento que se torna o pano
de fundo das digressões, em que vida e obras não se distanciam, antes se
iluminam e se inter-relacionam.
Indo além em seu interesse por Gonzaga
Duque, sempre presente em sua trajetória intelectual, há dois capítulos sobre
ele: um que esmiuça a ideia do crítico como artista a partir da crítica de
Gonzaga Duque aos salões de artes no Rio de Janeiro no início do século XX;
outro que aborda o 4o Centenário da Descoberta do Brasil e o olhar
ferino de Gonzaga Duque sobre as comemorações e seu significado para a
população em geral. São textos saborosos que atualizam questões pouco lembradas
hoje.
Dos poetas contemporâneos, destacam-se
seus textos sobre Sebastião Uchoa Leite e Carlos Ávila. Aqui o interesse
extrapola a poesia, a escolha desses poetas não é casual porque permite a Vera
conectar seus poemas com a ideia de poeta-crítico, já que ambos também possuem
trabalhos de crítica literária, para além de seus próprios poemas conterem uma
evidente dimensão reflexiva, derivada, em última instância, das formulações do
romantismo alemão sempre retomadas nas mais distintas tradições literárias.
Vale lembra que poeta-crítico, para Vera Lins, não é apenas o comentador de
literatura, mas também o leitor de artes plásticas, como é o caso especialmente
de Murilo Mendes, abordado no texto “Ficção e crítica: o ensaio exercido por
ficcionistas”.
Afora a abordagem de autores conhecidos
ou que merecem ser relembrados, como é o caso de Rawet, me parece também
fundamental o trabalho de introdução de escritores estrangeiros no panorama
nacional. Salvo engano, Vera Lins foi a primeira tradutora de poemas de
Ingeborg Bachmann entre nós, autora importante da lírica em língua alemã e que
manteve uma longa relação com Paul Celan. Neste novo livro, além de citada em
várias passagens, a ela é dedicado um capítulo que historia como se aproximou
da poesia de Bachmann e relata sua experiência de tradução não só da poesia
como também de ensaios da escritora, outra representante do raro agrupamento de
poetas-críticos.
Hilde Domin, poeta judia alemã, mais
uma exilada, merece no livro também um capítulo, nesse esforço de atualização
de nosso horizonte de referências. Além de dados biobibliográficos, Vera Lins
inclui a tradução de alguns poemas, quando o livro, para além dos ensaios, se
abre a outras modalidades, tal como o fez ao abordar a forma diário. Fechando o
volume, um texto sobre a poeta uruguaia Ida Vitale, traduzida por Heloisa Jahn
e igualmente pouco conhecida por aqui. A aproximar Bachmann e Vitale, o fundo
comum de pensar a poesia como uma dimensão reflexiva da linguagem, um problema
do pensamento, artigo quase sempre em falta em nosso panorama de criação.
Fiel à ideia de ensaio como campo de
reflexão e proposição de problemas, Vera Lins alarga o entendimento das obras
que aborda sugerindo relações entre setores da escrita e da experiência social,
aproximando o aparentemente distante, estendendo possíveis pontes entre registros
distintos, tendo em vista uma unidade de fundo entre arte, crítica e
pensamento.
* Ronald Polito é poeta, crítico literário, tradutor e artista plástico. Autor de, entre outras obras, Solo, Terminal e De passagem.
In https://www.banquetejornal.com/post/o-arquivo-de-ensaios-de-vera-lins