quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

múltiplas poéticas


aos olhos de Wermmer
tudo é possível crer
até em quem não cria

Federika Lispector

imagem: Jose Cesar Castro


ainda não sei
se baudelérico ou baudelírico
só sei que ando meio mallarmélico
completamente absurdado
com esse leite condensado
na minha língua do delírio

EuGênio Mallarmè


Paul Klee.
Brother and Sister. 1930 (oil,canvas)
Bauhaus

"Man_With_Hat"
Acrylic and permanent markers on canvas
Jean-Michel Basquiat

Gustav Klimt


VIA ESPESSA

“O louco estendeu-se sobre a ponte
E atravessou o instante.
Estendi-me ao lado da loucura
Porque quis ouvir o vermelho do bronze
E passar a língua sobre a tintura espessa
De um açoite.
Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz
À minha dura noite.”

HILDA HILST


Minha filha Beta fez uma postagem sobre como seu filho, Liam, tem o hábito de assobiar, e isso a fez lembrar de seu avô, meu papito. É o assobio hereditário. Ótimo pretexto pra repetecar aqui a foto que ela usou e um poema que escrevi pro Velho, no século passado.


para Olympio

Fernandes Guedes

meu pai caminha para os oitenta
batendo perna e assobiando
lá na morada do parque, em montes claros, mg
granizo de tempo e vento
aninhado nos cabelos
mas a música de pássaro
revoeja no assobio
ladeira acima e ainda
devagar e sempre
o passo de quem puxa
de uma perna desde menino

|um pé no estoicismo:
paciência repisada
por um espírito lúdico|

caçula de um sanfoneiro sapateiro menino
alfaiate mocinho lições de composição com mano
godô e logo tocando banjo no pequeno jazz band
de godofredo guedes, de riacho de santana, bahia

um futuro de improviso
e a música dos trilhos
no trem para são paulo
trem fechado com migrantes
ultrapassando toda estação
sequestrando o sonho
de cidade grande

— moço, que lugar é esse?
— aqui é jundiaí.
— cadê são paulo?
— já ficou lá longe.
— mas esse trem não para?
— só vai parar em americana,
levar esse povo pra lavoura.

— obrigado, mas a enxada
eu já deixei lá no riacho,
na beira do são francisco.
ajude aqui com esta janela,
que meu destino é são miguel,

vou trabalhar na fiação de seda,
entrar pro círculo operário
|e para um círculo esotérico|
e à noite tocar clarinete
num regional que só tem negro

e quando eu tocar nos cabarés e clubes
eles vão rir e sacudir a cabeça —
“esse branquelo é danado de bom”
e um dia terei a suprema honra de
acompanhar a divina elizeth cardoso

depois a vida idas e vindas
o clarinete no estojo preto
com monograma OFG
|um menino desenhando o pai
descendo a rua com o estojo na mão|
o assobio matinal, a música no rádio
o assobio anunciando a chegada
|o gato pontual esperando no portão|

a mãe sonhava os desastres
o pai com sangue na camisa
o brilho fugidio das lembranças
gotas de mercúrio no esgoto
da fábrica jorrando no rio

meu pai caminhando no tempo
o retorno ao riacho o pouso em
montes claros e a musa música
tocatas dos manos chorões
florituras do clarinete italiano
o papagaio solfejando no poleiro
e a música que me acompanha
o assobio atravessando o tempo

Luiz Roberto Guedes - 1998


O AMOR

O que tu tens, que temos,
que nos passa?
Aí, nosso amor é uma corda dura
que nos amarra e fere
e se queremos
deixar nossa ferida,
separar-nos,
nos faz um novo nó e nos condena
a nos sangrar e a juntos nos queimar.

O que tens? Te contemplo
e nada encontro em ti senão teus olhos
como todos os olhos, uma boca
perdida entre mil bocas que beijei, mais formosas,
um corpo igual aos que já resvalaram
pelo meu corpo sem deixar memória.

Vazia caminhavas pelo mundo
como uma simples jarra cor de trigo
sem ar, sem nenhum som, sem substância!
Em vão busquei em ti
profundidade para meus braços
que escavam, sob a terra, sem cessar:
sob tua pele, sob teus olhos
nada,
e sob teu duplo peito levantado
apenas
uma corrente de ordem cristalina
que não sabe por que corre cantando.
Por que, por que, por que,
ai, meu amor, por quê?

Pablo Neruda:
In Os Versos do Capitão 


Ricardo Carranza

Sketchbook 2024.

— em Perdizes, São Paulo, Brasil.



A recente publicação de Ensaios do arquivo (Rio de Janeiro: 7Letras, 2023, 156 p.), de Vera Lins, que reúne textos dispersos apresentados em congressos ou publicados em periódicos e coletâneas ao longo dos anos, se soma a dois trabalhos seus anteriores, Poesia e crítica: uns e outros (Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, 168 p.) e O poema em tempos de barbárie e outros ensaios (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013, 196 p.), em que se destacam as reflexões em torno da crítica de arte e da poesia brasileira, mas não apenas, abordadas da perspectiva do ensaio.

Os três livros formam um conjunto valioso e coeso, em que temas e problemas são retomados e aprofundados, entre eles Paul Celan, Ingeborg Bachmann (que ela traduziu), a crítica de arte no Brasil, principalmente a de Gonzaga Duque, de quem republicou alguns livros há muito não reeditados, mas também a de Ruben Navarra, crítico de arte brasileiro dos anos 1940, reflexões sobre cidade e memória, particularmente no século XIX e na virada para o XX, a forma do ensaio, as relações entre poesia e artes plásticas, Murilo Mendes, autores brasileiros anteriores ao modernismo e o mesmo tempo já distantes das principais “escolas” literárias do século XIX, escritores simbolistas do Brasil e alguns poetas brasileiros contemporâneos.

O pano de fundo, a forma ensaio, é o que mobiliza as reflexões. Ensaio, aqui, entendido principalmente a partir de Benjamim em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Nas palavras de Vera Lins: “Para os românticos alemães a crítica desenvolve a reflexão que a obra de arte contém, portanto não é julgamento, mas partilha com a obra de arte um modo de pensar infinito”. Aspecto central do alto romantismo alemão, a ideia de que a própria obra já contém elementos autorreflexivos, o papel da crítica não é propriamente avaliativo, mas de voz paralela que amplia a reflexão contida em germe na obra e ensaia suas múltiplas direções.

Outros autores são centrais no rol de referências de Ensaios do arquivo. Buscando indicar os mais decisivos para suas inquietações, importam Valéry em suas digressões sobre poesia e pensamento abstrato, em que a poesia, como ato de pensamento não integralmente consciente, se torna o território em que intelecto e sensibilidade se articulam; o crítico português João Barrento e tradutor de Paul Celan, particularmente em O gênero intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento, em que configura a ideia de ensaio a partir das noções de deambulação orientada, deriva com norte, labirinto com zênite à vista, centro descentrado ao qual sempre retornamos; e Jacques Rancière, em A partilha do sensível, que formula uma alternativa às categorias tão problemáticas de modernismo e pós-modernismo propondo pensarmos a arte e a literatura a partir de três regimes estéticos sucessivos: o ético da imagem sagrada; o representativo a que chama poético; e o estético, em vigor desde o final do século XVIII, orientado pela quebra dos gênero e pela atenção ao que é ínfimo, banal, comum.

As reflexões dos autores do primeiro romantismo alemão sempre ocuparam o interesse de Vera Lins, o que de certa forma é raro no cenário nacional. Neste novo livro, há todo um capítulo dedicado a Novalis, principalmente por ocasião da publicação de Pólen, e que é uma excelente introdução ao pensamento do autor e sua importância para pensarmos não apenas o romantismo, mas o regime da arte dos dois últimos séculos.

Na esteira de autores de língua alemã ou da Alemanha, onde Vera viveu alguns anos, ela dedicou-se mais verticalmente a obras de Walter Benjamin e aos poetas Paul Celan e Ingeborg Bachmann, sempre tendo como pano de fundo o tema do exílio, do desterro, do deslocamento, mas não apenas nesses autores.

Nessa perspectiva, chama atenção um ensaio sobre Samuel Rawet, contista que me parece fundamental na prosa brasileira dos anos 1960, ao lado de Clarice Lispector e João Guimarães Rosa, em que o tema do exílio se articula com o da linguagem. Só nos últimos anos a obra de Rawet foi republicada e passou a ter a atenção que merece, mesmo que ainda insuficiente diante do que pode ser considerado a partir de seus livros, tanto para a compreensão de uma época do país quanto para os caminhos da prosa entre nós. Rawet veio ainda criança para o Brasil, aprendeu a língua portuguesa e é essencial para pensarmos como a circunstância de não pertencimento a uma cultura se cruza com a deriva da linguagem e o nomadismo da experiência existencial e da escrita.

Não apenas Rawet atesta o interesse neste novo livro pelas formas da prosa, seus gêneros diversos. Além dos diversos textos e passagens em que é abordada a forma ensaio, há um curioso capítulo sobre o diário em que se esboça a ideia de tratá-lo como um gênero ensaístico. Em proximidade com esse capítulo, no qual, inclusive, a autora introduz elementos de sua própria biografia, há outros em que se cruza a memória pessoal e as reflexões em pauta, como suas recordações dos anos em que viveu na Alemanha ou de uma exposição de arte brasileira que viu em Viena, em 2007/2008, que lhe permite aproximar diversos de seus interesses: as artes plásticas do Brasil do final do século XIX e do modernismo simultaneamente a obras poéticas e à crítica de arte modernistas. Mas é principalmente a imbricação entre experiência vivida e temas do pensamento que se torna o pano de fundo das digressões, em que vida e obras não se distanciam, antes se iluminam e se inter-relacionam.

Indo além em seu interesse por Gonzaga Duque, sempre presente em sua trajetória intelectual, há dois capítulos sobre ele: um que esmiuça a ideia do crítico como artista a partir da crítica de Gonzaga Duque aos salões de artes no Rio de Janeiro no início do século XX; outro que aborda o 4o Centenário da Descoberta do Brasil e o olhar ferino de Gonzaga Duque sobre as comemorações e seu significado para a população em geral. São textos saborosos que atualizam questões pouco lembradas hoje.

Dos poetas contemporâneos, destacam-se seus textos sobre Sebastião Uchoa Leite e Carlos Ávila. Aqui o interesse extrapola a poesia, a escolha desses poetas não é casual porque permite a Vera conectar seus poemas com a ideia de poeta-crítico, já que ambos também possuem trabalhos de crítica literária, para além de seus próprios poemas conterem uma evidente dimensão reflexiva, derivada, em última instância, das formulações do romantismo alemão sempre retomadas nas mais distintas tradições literárias. Vale lembra que poeta-crítico, para Vera Lins, não é apenas o comentador de literatura, mas também o leitor de artes plásticas, como é o caso especialmente de Murilo Mendes, abordado no texto “Ficção e crítica: o ensaio exercido por ficcionistas”.

Afora a abordagem de autores conhecidos ou que merecem ser relembrados, como é o caso de Rawet, me parece também fundamental o trabalho de introdução de escritores estrangeiros no panorama nacional. Salvo engano, Vera Lins foi a primeira tradutora de poemas de Ingeborg Bachmann entre nós, autora importante da lírica em língua alemã e que manteve uma longa relação com Paul Celan. Neste novo livro, além de citada em várias passagens, a ela é dedicado um capítulo que historia como se aproximou da poesia de Bachmann e relata sua experiência de tradução não só da poesia como também de ensaios da escritora, outra representante do raro agrupamento de poetas-críticos.

Hilde Domin, poeta judia alemã, mais uma exilada, merece no livro também um capítulo, nesse esforço de atualização de nosso horizonte de referências. Além de dados biobibliográficos, Vera Lins inclui a tradução de alguns poemas, quando o livro, para além dos ensaios, se abre a outras modalidades, tal como o fez ao abordar a forma diário. Fechando o volume, um texto sobre a poeta uruguaia Ida Vitale, traduzida por Heloisa Jahn e igualmente pouco conhecida por aqui. A aproximar Bachmann e Vitale, o fundo comum de pensar a poesia como uma dimensão reflexiva da linguagem, um problema do pensamento, artigo quase sempre em falta em nosso panorama de criação.

Fiel à ideia de ensaio como campo de reflexão e proposição de problemas, Vera Lins alarga o entendimento das obras que aborda sugerindo relações entre setores da escrita e da experiência social, aproximando o aparentemente distante, estendendo possíveis pontes entre registros distintos, tendo em vista uma unidade de fundo entre arte, crítica e pensamento.


* Ronald Polito é poeta, crítico literário, tradutor e artista plástico. Autor de, entre outras obras, Solo, Terminal e De passagem. 

In https://www.banquetejornal.com/post/o-arquivo-de-ensaios-de-vera-lins


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